2006/09/29

Majorettes e Playstations


Ser adulto numa era dominada por equipamentos e ferramentas que se baseiam numa existência virtual deve ser um pouco penoso para quem cresceu rodeado de objectos reais e concretos sem poder voar levado pela imaginação de um brinquedo ou um livro... E, fruto de "fast food" para a mente dos dias de hoje, uma diferença física de, digamos, 3 ou 4 anos, podem significar anos luz de distância numa simples conversa....
Desde menino que sinto especial admiração por tudo quanto tem a ver com automóveis; tive a sorte de crescer a cerca de 50 metros de uma oficina algo "sui generis" fundada nos anos 30 ou 40, pertença de 2 irmãos já com alguma idade, que a herdaram do pai, e na qual ainda hoje é comum se efectuarem reparações "à moda antiga". Desde sempre, ao passar o portão de entrada, era como se recuasse no tempo alguns anos, e visse os antepassados próximos dos automóveis novinhos em folha que circulavam lá fora, por assim dizer, na enfermaria... O facto de ser hábito fazer birra sempre que, ao ser levado de minha casa até à casa da ama que tomou conta de mim até aos 4 anos, não era feito um desvio pelo quartel de bombeiros lá da terra, só para ver se os carros ainda lá estavam, e relembrar todos seus nomes, como se de algo religioso se tratasse, ou pela montra da papelaria do Nogueira, para ver as novidades, é de certeza um sinal de que isto vem desde que me conheço enquanto pessoa... Também, entre os meus vizinhos do prédio, havia 2 que tinham especial afecto por estas maravilhas, tendo uma grande colecção de pequenos carrinhos, que na altura serviam de catálogo para ajudar a identificar os modelos a sério que via a circular... Claro que, aos olhos de um menino, um simples brinquedo de 7 cm de comprimento se pode tornar num potente e belíssimo automóvel real capaz de o levar para lá do pôr do sol, a alta velocidade, com a brisa a bater na face, ou a proporcionar a vertigem em cada travagem ou curva efectuada numa derrapagem controlada, com braços cruzados em contra-brecagem e ponta-tacão, para não perder potência à saída das curvas, rasando ombreiras de portas, cadeiras da sala, numa pista improvisada em cima do tapete ou no chão em tacos de madeira... Quando, anos mais tarde, numa feira de velharias em Coimbra, encontrei um modelo idêntico ao que tinha passado por minhas mãos anos antes, foi como se tivesse encolhido, qual Alice, e me tivesse tornado novamente menino... O valor pedido era algo irrisório, talvez 100 escudos ou algo parecido, e não hesitei em comprar o dito carrinho... Claro que, para quem se habituou a construir réplicas com algum detalhe e a mexer em veículos reais, este modelo é no mínimo tosco, mas isso é de tal forma irrelevante, que ainda hoje e aos meus olhos de menino, o carrinho é perfeito, apesar das esmurradelas na pintura e de pequenas mossas na carroçaria... Ao crescermos e vermos o mundo com o olhar de adultos, muitas vezes perdemos a ingenuidade de vermos as coisas pelo aspecto mais simples, e ganhamos com isso horas de angústia e cabelos brancos, como se costuma dizer... Ouvi há algum tempo alguém dizer que o que separa os adultos dos meninos é o tamanho dos seus brinquedos; bem, às vezes não me importo nada de ser menino, e, não raras vezes, através dos meus olhos de menino, encontrei soluções e alternativas para situações da minha vida de adulto, decidindo instintivamente, mas com uma sensação de honestidade tal que me deixou de consciência tranquila e a solução afinal era a óbvia, sem o perceber porquê na altura; é excelente podermos ser meninos de vez em quando, basta sabermos qual a porta que dá acesso a esse mundo maravilhoso, onde a cada segundo se podem descobrir nas coisas mais simples, significados mais profundos e respostas mais claras.

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